domingo, 5 de fevereiro de 2012

Amor fati e as coerências que a gente ama

Qual é a sua cor "erência" do dia?
"Não existe nota errada. Depende da que vem depois." Thelonious Monk
Há algum tempo tenho questionado sobre a palavra "coerência" e cada vez mais tenho  osbervado e desenvolvido um certo ceticismo sobre o seu significado. Por qual razão? Porque na maioria dos casos ela me transmite a idéia de ter que seguir uma sequência, ela remete a ter que corresponder a algo anterior como uma linha reta como única opção entre um ponto e outro.

Temos uma série de automatismos e padrões que seguimos inconscientemente e que nos fazem ter respostas "default" na vida. Fala-se muito em liberdade mas no fundo tudo o que espera-se é a coerência, e justamente ao que nos causa sofrimento! Se um relacionamento acabou espera-se um período de "luto" e se a pessoa está feliz significa que não gostava do outro. Se morre alguém próximo e não há demonstração de sofrimento dramático, passa-se por insensível. Se casou, precisa estar sempre radiante como sinal de felicidade, caso contrário parece que as coisas não estão bem. Se teve filhos então, nunca mais pode-se esboçar o menor sinal de tristeza para não parecer falta de amor. Se na separação, não odeia o ex- marido é porque ainda gosta dele. Se uma pessoa com quem você saiu não liga no dia seguinte é porque não quer nada, se liga, é porque quer tudo.
Então seguimos nos encaixotando em padrões e rótulos como um grande Pantone de algumas poucas possibilidades bem previsíveis, vivendo de forma bem limitada.

Um exemplo recente foi de uma amiga que tinha acabado de enfrentar o término de um relacionamento e convidei-a para sair para dançar. Ela respondeu que ainda não estava pronta (nossa resposta básica pra justificar a comodidade). Por conhecê-la, questionei sobre qual seria o tempo até ela estar pronta pra se divertir, pois passar por um luto por respeito a uma necessidade interna é uma coisa, mas validar a apatia por "coerência" é outra. Então, propus que ela viesse comigo e que poderia ir embora a qualquer momento, mas que experimentasse como era sair de casa carregando toda a aquela dor rumo a diversão. Bem, ela não só foi e dançou muito a noite inteira, como disse uma coisa que não esqueci: "Eu dancei com dor, e foi bom!" Demos uma gargalhada e disse: "Bem vinda a incoerência!"

Todos nós podemos experimentar um tantinho de lucidez num estalar de dedos, seja no sofrimento ou alegria, mas acreditamos ser necessário um preparo, uma qualificação, não nos vemos como já lúcidos, nos comparamos com as referências do que queremos alcançar e nos achamos inábeis. E para obedecer essa "coerência", muitas vezes nosso referencial é de vitória/derrota com a vida, justamente uma das causas de maior confusão e sofrimento. Estamos o tempo todo querendo acertar, e dessa forma controlamos e jogamos. E quando "erramos", nos culpamos, frustramos, sofremos. Porque sempre oscilaremos entre o vencedor e o perdedor, como se houvesse uma quantidade de erros e acertos a ser completada na vida, num placar que imaginamos ter que atingir. Mas logo adiante algo nos pega de surpresa e se não estivermos atentos caimos exatamente na mesma armadilha: porque não basta aprender, há de se compreender, de ir além, de ampliar o modo de ver e principalmente, colocar em prática o que fez com que a visão mudasse a partir dali.

"O samsara é coerente, a lucidez não é."

Qual é a liberdade? Blefar. Quando esperam de nós as cartas certas, nós apostamos com as cartas que temos e nos divertimos com o jogo. Como num jogo de poker, blefar diante de um impulso, um padrão aprisionante, algo negativo, quebrar a banca do que não nos serve mais e oferecer as fichas. Porque o fazemos não para provar ou ganhar algo, o fazemos por uma natural coerência com aquilo que nunca muda, seja qual for o jogo (olha eu citando uma palavra que não me faz muito sentido, quanta incoerência!).

Quando temos esse compromisso com alguma coerência na vida e estabelecemos dualidades que nos enquadram em algum tipo de configuração, temos um alcance muito limitado de possibilidades. Não temos essa necessidade se estivermos abertos, pois assim somos livres para transitar em qualquer situação, experimentando a plasticidade e a ludicidade da vida como uma criança. Isso pode até implicar aderirmos a alguns jogos, porém a visão ampla que não fixa referencial nos formatos, nos acompanha.

"Não é possível haver uma transformação que não seja por saltos, que não seja descontínua. O contínuo não é possível, temos sempre o discreto. A coisa era de um jeito, agora é outra. Isso não diz respeito ao objeto mas a própria mente. Todas as mudanças são não-causais. Continuidade é uma explicação que a gente dá. Estamos nos valendo de uma liberdade. A impermanência é um indicativo de que há uma natureza livre por trás dos fenômenos, que não respeita, que desafia nossas construções e coerências." Lama Samten 

Conforme caminhamos percebemos que não se trata de bom/mal, vitória/derrota, mas da nossa mente, do nosso olhar. Tudo pode ser transformado nesse exato minuto, e essa talvez seja a magia que a gente espera a cada segunda-feira, cada primeiro dia do mês, virada de ano, emprego, viagem, trabalho e relacionamento novos. Esperamos a virada, o salto, ansiamos que não sejamos somente mais os mesmos limitados, não apenas coerentes.
Então podemos nos divertir, de virar ano, mês e semana com o frescor de que viramos ano, mês e semana a todo momento, a cada estalar de dedos. Tudo que aspiramos está disponível agora e a cada pé fora da "coerência esperada", um sabor de que isso é possível.

"Não há normas. Somos todos exceção a uma regra que não existe." Fernando Pessoa

O que quero dizer como um "passo fora da coerência" é algo como o "amor fati" de Nietzsche, o "amor ao destino", a plena aceitação da vida como ela é e dos fenômenos como se apresentam, seja a alegria, a dor, a tragédia, o prazer, acolher o que parece "incoerente" com um olhar que transcende os formatos para uma visão mais vasta  do que aquela em que fingimos aceitar a vida esperando que algo ou alguém nos salve ;-)
Através da prática de perceber todo o jogo sem se prender a isso ou aquilo, é possível olhar "além da vida" e com isso, colocar um pé pra fora de uma mera existência para uma existência com mais significado, que inclua acolher tudo isso em nós e nos outros.

Tudo pode ser um instrumento para a vaidade ou uma identidade que queremos sustentar, do ceticismo a fé, passando por uma infinidade de crenças. E tudo pode ser um instrumento para evolução e lucidez, do ceticismo a fé, passeando por uma infinidade de mundos. Podemos escolher o jogo que queremos jogar por pura liberdade inerente a esse jogo que sempre muda e podemos escolher jogar sem jogo nenhum por pura liberdade de uma mente lúcida, que compreende a real natureza das coisas como "sendo tão sem substância e ao mesmo tempo tão real quanto um sonho" como sabiamente diz o Budismo. Então não levamos tão a sério as formas que as coisas tenham, mas ficamos mais atentos sobre o que nos move em direção a elas.

Seja no formato que for, o mais fascinante sempre é percorrer o próprio caminho.

Seja isso coerente, ou não. ;-)


"Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! (...) Nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo, mas amá-lo...” Nietzsche



P.S: Dedico a todos os companheiros de caminho, especialmente a "parteira" Paulinha.